segunda-feira, 4 de junho de 2012

A Voz do Brasil: 77 anos de uma tradição inventada (Juliana Almeida*)

No universo das minhas leituras para o mestrado em sociologia, me deparo com um livro organizado por Eric Hobsbawm e Terence Ranger com o instigante título “A invenção das tradições”. O livro traz uma coletânea de textos de historiadores sobre diversas tradições que foram ‘inventadas’ no sentido de perpetuar alguns comportamentos através da repetição. Dá pra imaginar que o famoso saiote escocês, chamado de kilt e associado aos guerreiros antigos da cultura celta, na verdade surgiu de um passado forjado? Pois é, esse é um dos discursos que os pesquisadores acabaram desmistificando. Um longo assunto que trataremos em outra oportunidade. Mas, cruzando os trópicos, cá estamos nós em terras tupiniquins e eis que temos nossas tradições também inventadas para perpetuar – através da formalização institucional – determinadas práticas. Mas, se por tradição entendemos costumes, o que é então esta tradição inventada? Na introdução do livro, Hobsbawm se preocupa em contextualizar essas definições. A tradição como sinônimo de costume é criada de forma espontânea e acaba mudando com o passar do tempo, assim como às relações sociais, já as tradições ‘inventadas’ são nas palavras de Hobsbawm: “um conjunto de praticas, normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente; uma continuidade em relação ao passado.” Ao ler tal definição me veio à mente a nossa famosa e quase muda Voz do Brasil. O mais antigo programa radiofônico brasileiro faz 77 anos no próximo dia 22 de julho. Amado por alguns, odiado por outros tantos, o programa vem tentado sobreviver a uma enxurrada de ações para continuar no ar. A Advocacia Geral da União tem tido muito trabalho para reverter às ações de Norte a Sul do país pela flexibilidade no horário da transmissão. No dia 27 de janeiro, por exemplo, a AGU conseguiu cassar uma liminar que autorizava uma rádio no Rio de Grande do Sul a transmitir jogos de futebol no horário oficial do programa. Isso, menos de uma hora depois de a liminar ter sido obtida pela emissora. Outras emissoras têm sucesso, como a Rádio Bandeirantes de São Paulo, que transmite o programa de madrugada. A Voz do Brasil surgiu durante o regime de Getúlio Vargas - que não era bobo - e logo percebeu a influência, a abrangência e o interesse que o rádio despertava na sociedade – principalmente na população analfabeta que não tinha como ler os jornais. É bom lembrar que a televisão chegou ao Brasil em 1950 e até lá o rádio era o meio de comunicação que atingia, realmente, a massa. Assim como Hitler, Getúlio percebeu o potencial do rádio na propagação da ideologia do governo e investiu pesado, inclusive encampando várias emissoras nos anos 30. Primeiro teve o nome “Programa nacional”, em 1939, já com o Estado Novo, o programa foi rebatizado como “A hora do Brasil” e tornou-se transmissão obrigatória das emissoras. De lá para cá, mudou novamente de nome, mas manteve o horário e a obrigatoriedade além de invocar o nacionalismo romântico dos acordes da abertura da ópera “O guarani”, de Carlos Gomes. Nos últimos anos, o programa passou por mudanças, como a infeliz que profanou a música de Carlos Gomes no ritmo de axé, samba, choro e até forró, mas procurou tirar o ‘ar’ autoritário que sempre perseguiu as transmissões para um ‘ar’ mais cidadão com a participação de vários órgãos federais, um texto mais leve e reportagens especiais. Não há dúvidas que A Voz do Brasil é uma aula técnica de radiojornalismo, mas o conteúdo precisa ter um caráter menos oficial (mesmo com as tentativas que são feitas) e, diante das mudanças proporcionadas pela evolução dos meios de comunicação, quem sabe ser realmente flexibilizada para que o ouvinte a ouça de forma espontânea, sem a carga dolorosa da obrigatoriedade. *Jornalista e mestranda do NPPCS/UFS