Uma
das maiores preciosidades que os gregos deixaram para a humanidade temos, sem
dúvida, a sua mitologia. Milhares de anos depois, seus mitos são sempre
revisitados, reinterpretados e atualizados. Narciso e Eros são frequentemente
evocados para explicar fenômenos que vão da psicologia a comportamentos da
sociedade de consumo. São dois referenciais de beleza e amor, muitas vezes
destrutivos.
O
mito de Narciso e Eco é uma tragédia que surgiu na Grécia antiga e que, diante
das representações do narcisismo nas artes e na cultura, se desenvolveram
vários estudos na área da psicanálise e sociologia para entender até que ponto
o narcisismo influencia comportamentos na sociedade contemporânea. O nome
Narciso (tema narkhé = torpor, como em narcótico para nós) é uma importante
representação da vaidade humana. O mito traz a história trágica envolvendo a
ninfa Eco e o caçador de extrema beleza Narciso.
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Narciso - Caravaggio |
Diz
o mito que Narciso era filho do deus Cephisus e da ninfa Liríope. Ele
despertava muita cobiça nas ninfas e donzelas, mas vivia só, pois não
encontrava alguém que merecesse seu amor. E foi justamente esse desprezo pelas
mulheres e a fascinação por sua imagem que o levou à morte. Havia uma ninfa,
chamada Eco, que tinha o defeito de falar demais e costumava sempre repetir a
última palavra em qualquer conversa. A ninfa Eco foi amaldiçoada pela deusa
Hera condenado-a a não mais falar por iniciativa própria e só responder quando
fosse interpelada. Ela se apaixona perdidamente por Narciso, mas é repelida
pelo jovem que não a julga digna do seu amor. Depois desse acontecimento, a
ninfa passa a viver nas cavernas e definha até a morte. Seus ossos se
transformam em pedra e nada resta além da sua voz.
Comovido
pelo sofrimento da ninfa, o deus Nêmeses pune Narciso e o induz a beber água
numa fonte onde era possível ver o seu reflexo na água. Admirado com sua
própria imagem, o jovem pensa trata-se de algum espírito das águas. Não se
contendo, baixa o rosto para beijar o seu reflexo e mergulha os braços para
abraçar-se. O contato com a água faz sua imagem sumir e ele se sente
desprezado. Dessa forma, Narciso ficou dias a admirar sua própria imagem na
fonte. Sem comer ou beber seu corpo definha. A beleza e o vigor deixam-no e
quando ele gritava "Ai, ai", Eco respondia com as mesmas palavras.
Assim Narciso morreu. A história do mito se completa com sombra de Narciso
atravessando o rio Estige, em direção ao Hades, ela ainda debruça-se sobre suas
águas para contemplar sua figura.
O
mito de Narciso influenciou muitos artistas ao longo dos séculos. Nas artes
plásticas, há pinturas de Caravaggio, Nicolas Poussin, Turner, Salvador Dalí e
Waterhouse. Na literatura, encontram-se várias passagens na obra do russo
Fiódor Dostoevsky e influenciou a obra do escritor inglês Oscar Wilde. Os estudos
psicanalíticos do narcisismo tomaram verdadeiro impulso com o Freud em seu
artigo intitulado ‘Introdução ao Narcisismo’. As primeiras observações de Freud
procuram identificar a origem do
narcisismo como um investimento libidinal do ego. Para Freud os instintos
autoeróticos são fundamentais mas há algo que se acrescenta a esse autoerotismo
para se formar o narcisismo.
O
indivíduo tem uma dupla existência: “com fim em si mesmo e como elo de uma
corrente, à qual serve contra, ou, de todo modo, sem a sua vontade”. Na
primeira o indivíduo vê a sexualidade nele mesmo e a outra há uma projeção onde
ele colocará suas forças. Algumas vias são destacadas por Freud que intervêm
nessa relação da sexualidade – projeção para aproximar o conhecimento do
narcisismo: consideração da doença orgânica, da hipocondria e da vida amorosa
dos sexos. Na doença orgânica o indivíduo recolhe seus investimentos libidinais
de volta para o Eu, até a melhora da enfermidade. Na hipocondria, as sensações
físicas são muito dolorosas e influenciam no efeito da libido.
A figura simbólica de Narciso, como uma
espécie de culto da intimidade, cresce do colapso e não da afirmação da
personalidade. Lasch apresenta como características do narcisismo a pseudo auto
percepção, sedução calculada, humor nervoso e autodepreciativo. Para o autor,
Há conexões entre o tipo de personalidade narcisista e certos padrões
característicos da cultura contemporânea, tais como o temor intenso da velhice
e da morte, o senso de tempo alterado, o fascínio pela celebridade, o medo da
competição, o declínio do espírito lúdico, as relações deterioradas entre
homens e mulheres. Lasch ainda aponta que o narcisismo chama a atenção porque
os narcisistas alcançam posições de proeminência. Apesar de todo o seu
sofrimento íntimo, o narcisista possui muitos traços que permitem o sucesso em
instituições burocráticas, as quais valorizam a manipulação de relações
interpessoais, desencorajam a formação de ligações pessoais profundas e, ao
mesmo tempo, dão ao narcisista a aprovação que ele precisa para validar sua
auto-estima.
Na
sociedade contemporânea, as imagens fantasísticas são a tônica das relações de
consumo e as inflexões dos meios de comunicação contribuem para a produção e
reprodução de simulacros. Adorno faz uma
crítica a indústria cultural e a cultura de consumo destacando que se aproveita
da fraqueza do ego narcísico dos consumidores, pois se mantém através de uma
pseudo-satisfação. Outro ponto de destaque é que a indústria cultural aniquila
a determinação do sujeito enquanto indivíduo, na medida em que, massifica os
conteúdos e impõe barreiras para ver além do que interessa a coletividade.
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AMORE E PSICHE, ANTONIO CANOVAS
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Em
Eros há algo que envolve mistérios que serviram de base para o desenvolvimento
social do erotismo. O mito de Eros e Psiquê trata do amor que tudo suporta.
Psiquê, uma linda mortal acaba despertando a ira da deusa Afrodite. Afrodite
enviou, então, seu filho Eros (cupido) para fazer com que Psiquê se apaixonasse
pelo homem mais feio e vil que existisse. Acontece que Eros acaba se
apaixonando por Psiquê, e os dois casam, sem que, porém, Psiquê pudesse ver o
rosto do marido, para que pensasse que esse casamento era um castigo dos
deuses. Depois de resistir por algum tempo, Psiquê acabou por quebrar as regras
impostas e viu o rosto de Eros que, enfurecido, abandonou-a. Mas seu amor por
Eros era tão intenso que a fez procurar Afrodite para pedir-lhe que
intercedesse por ela, ajudando-lhe a encontrar Eros. Afrodite impôs-lhe vários
sacrifícios e tarefas. Ela vence todas as tormentas e casa-se com Eros. Essa
união resultou ainda no nascimento de seu filho Voluptas (Prazer).
O filósofo sul coreano Byung-Chul Han, vem
chamando a atenção para o que ele chama de “a agonia de Eros”. Em pleno início
do século XXI vivemos a sociedade dos excessos, da exposição sem mistério, do
apelo escancarado que não dá espaço para a imaginação. Tudo se transforma em
objeto de consumo. O narcisismo, por exemplo, não é amor próprio. O narcisista
não pode fixar claramente seus limites, tudo tem que girar em torno do Eu. “Vivimo
em uma sociedade que se hace cada vez más narcisista. La libido se invierte
sobre todo em la propia subjetividade. El narcisismo no es ningún amor próprio.
El sujeto del amor próprio empreende uma dilimitación negativa frente al outro,
a favor de sí mismo. Em cambio, el sujeto narcisista no puede fijar claramente
sus limites. De esta forma, se diluye el limite entre él y el outro. El mundo
se le presenta solo como proyecciones de sí mmismo de algún modo. Deambula por
todas partes como uma sombra de spi mismo, hasta que se ahora em sí mismo”
(HAN, 2014, p. 05).
Acontece
que o sujeito narcisista-depressivo está esgotado e fatigado em si mesmo. Como
isso é possível? Han diz que o corpo, com seu valor de exposição, equivale a
uma mercadoria. Não há nenhuma ‘personalidade’ sexual. Se o outro se percebe
como um objeto sexual, se desfaz aquela ‘distância original’ que impede que o
outro se coisifique como um objeto. Pelos meios de comunicação digitais,
tenta-se destruir as distâncias frente ao outro. Onde tudo é possível, não há
amor como ferida e paixão. O amor e a sexualidade têm um preço. Suprime-se um
desejo dirigido ao ausente. Aí onde Eros começa a agonizar.
“El amor se
positiva hoy como sexualidade, que está sometida, a su vez, ao dictado del
rendimento. El sexo es rendimento. Y la sensualidade es um capital que hay qye
aumentar. El cuerpo, com su valor de exposición, equivale a uma mercancia. El
outro es sexualizado como objeto excitante. No se puede amar al outro ya no es
uma persona, pues há sido fragmentado em objetos sexuales parciales. No hay
nunguna personalidade esual” (HAN, 2014, p. 13).
A ética de Eros certamente não contempla os
abismos de um erotismo que se manifesta como excesso e loucura, mas chama a
atenção com insistência para a negação do outro, que está em vias de
desaparecer em uma sociedade que se mostra cada vez mais exibicionista. Han fala
de um amor domesticado que serve como fórmula para o consumo, como um produto
sem atrevimento, sem excessos. Não há transcendência e nem transgressão. Somos
sujeitos incapazes de concluir a vida. As imagens pornôs, por exemplo, mostram
uma mera vida exposta. O pornô é a negação de Eros. Aniquila a sexualidade em
si mesma. O obsceno no pornô não consiste no excesso de sexo, já que ali não há
sexo. A sexualidade não está armazenada nessa ‘razão pura’. Para o filósofo, “a
transformação do mundo em pornô se realiza com a sua profanação” (HAN, 2014, p.
25). Essa profanação se materializa com a desritualização e dessacralização. A
“cara” pornográfica não expressa nada, não há expressividade e mistério.
A
imaginação de internet parte de uma acumulação de atributos, mais do que uma
visão global do objeto e, nesta configuração específica, as pessoas dispõem de
menos dados, parecem menos capazes de idealizar. Sua imaginação está
determinada pelo consumo. Os novos meios de comunicação não dão precisamente a
fantasia. Mas, uma grande quantidade de informações, sobretudo visuais. A
hipervisibilidade não é vantajosa para a imaginação. Assim, o pornô, que de
certo modo leva ao máximo a informação visual, destrói a fantasia erótica.
“Pero
la desnudez, como exhibición, sin mistério ni expresión, se acerca a la
desnudez pornográfica. Tampoco la cara pornográfica expressa nada. Carece de expresividad
y de mistério: de uma figura a la outra, de la seducción al amor, luego al
deseo y a la sexualidade, finalmente al puro y simple pornô, cunato más se
avanza, más adelantamos em el sentido de um secreto menos, de um enigma menor.
Lo erótico nunca está libre de mistério. La cara cargada com valor de
exposición hasta estalar no promete ‘ningún uso nuevo, colectivo de la
sexualidade. La exposición aniquila precisamente toda possibilidade de
comunicación erótica. Es obscena y pornográfica la cara desnuda, carente de
mistério e expresión, reducida exclusivamente a su estar expuesta. El
capitalismo intensifica el progresso de lo pornográfico em la sociedade, em
cuanto lo expone todo como mercancia y lo exhibe. No conoce ningún outro uso de
la sexualidade. Profaniza el Eros para convertirlo em pornô”. (HAN, 2014, p.27)
Platão disse que Eros se dirige a alma e tem
poder sobre todas as suas partes: desejo (epithymia), valentia (thymos) e razão
(logos). Cada parte da alma tem sua própria experiência do prazer e interpreta
o belo de forma própria em cada caso. Essas três características agem
articuladas. Na sociedade do consumo essa balança desequilibra pelas práticas
de exposição e narcísicas. Vemos o fim da felicidade amorosa com uma prova de
que o tempo pode abrigar a eternidade..
* Juliana Almeida
Referências
ADORNO, T. W. Mínima Moralia (1951). São Paulo: Ática, 1992
FREUD, Sigmund. Introdução ao Narcisismo, ensaios da Metapsicologia e outros textos
(1914-1916). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
HAN, Byung-Chul. La agonia del Eros. Barcelona: Herder Editorial, 2014.
LASCH, C. A cultura do narcisismo: a vida americana numa era de esperanças em
declínio. Rio de Janeiro: Imago, 1983.