Como
professora de cultura digital, me vi na obrigação de ler o livro tão badalado
de um dos empreendedores pioneiros do Vale do Silício, Andrew Keen.
“#vertigemdigital: porque as redes sociais estão dividindo, diminuindo e
desorientando” traz um panorama de que pensam os “cabeças” do Vale do Silício,
criadores das redes sociais mais influentes do mundo. Entre citações
filosóficas, delírios foucaultianos e devaneios cinematográficos de Hitchcock,
Andrew Keen traça um perfil bem pessimista do desenvolvimento das redes sociais
digitais, seus impactos na nossa privacidade e identidade. Confesso que a
leitura não me convenceu.
O livro
é uma mistura de diário de bordo e experiências vividas pelo autor que o
inquietaram a ponto de escrever o livro. Diante do cadáver do filósofo
iluminista Jeremy Bentham que, para atender sua vontade, tem seu corpo exposto
no Autoícone, na Universidade Oxford, ele desperta para os perigos da exposição
sem limites e como, ele mesmo, tenta frear seus impulsos de compartilhamento na
rede.
O futuro
do mundo é social. Isso é dito em todo o livro. Seria, inclusive, uma profecia
feita por Mark Zuckerberg, criador do Facebook. E isso não será nada bom.
Segundo Keen “a mídia social hoje estilhaça nossas identidades, de modo que
sempre existimos fora de nós mesmo, incapazes de nos concentrar no aqui e
agora, aferrados demais à nossa própria imagem, perpetuamente revelando nossa
localização atual, nossa privacidade sacrificada à tirania utilitária de uma
rede coletiva”.
Ora, nós
ainda não vivemos em uma sociedade tecnocrata e ainda impomos nossa vontade
sobre a tecnologia. Somos bastante influenciados, sim. Mas o poder ainda está
em nossa decisão do tamanho da exposição que teremos. Essa visão determinista
de Keen realmente me incomoda durante toda a leitura.
Que a
sociedade em rede se tornou um “bacanal transparente’ eu ate concordo. Há
excessos em tudo. Não temos mais o tempo e o espaço como regulador das nossas
ações. Como bem diz Manuel Castells “são espaços de fluxos e tempo intemporal”.
É um outro plano de realidade. Keen parte de conceitos e afirmações que
não deixam clara sua linha de
raciocínio. Ao dizer que TUDO se tornará
social, não é o bastante para entender todos os malefícios que a revolução
tecnológica nos espera.
Assim
como a Revolução Industrial mudou o rumo da humanidade, a revolução tecnológica
tá cumprindo o seu papel. Difícil prever o futuro. Difícil entender uma
sociedade que sai do fordismo para, segundo David Harvey, atuar na acumulação
flexível. Estamos no meio das mudanças onde o analógico e o digital se
encontram. Não temos como avaliar tudo isso “friamente” porque a revolução está
acontecendo agora.
A
questão que envolve a privacidade não é discurso novo. Richard Sennett traz no
seu maravilhoso livro “O declínio do homem público”, que a intimidade no século
XVIII já era algo discutido e os limites entre o que é público e privado
também.
Keen
destaca que estamos desenvolvendo um comportamento de rebanho, na perspectiva
do “compartilhamento sem atrito” possibilitado pelas redes sociais. Ora, o que
a cibercultura nos proporciona é um encontro por afinidades, uma renovada forma
de ‘tribalização’ do mundo. Não há fronteiras para estabelecer laços que, por
sinal, são multifacetados, fracos e especializados.
Ao citar
Karl Marx, “os homens fazem sua própria história, mas não a fazem segundo seus
desejos; não a fazem nas circunstâncias
que eles mesmo escolhem, porém nas circunstâncias encontradas, dadas e
transmitidas do passado”, Andrew Keen acaba ressussitando
uma meta narrativa que o passado e o presente estão sempre em tensão e sempre
recorremos à tradição para sustentar nossas práticas sociais.
Vivemos
tempos líquidos, o velho Zigmunt Bauman já nos alertou. Há mudanças estruturais
profundas. Não é uma visão rasa e apocalíptica que vai explicar toda sua
complexidade. Dizer que as redes sociais estão cumprindo ou até substituindo o papel
do Estado-Nação foi demais para o meu bom senso. Andrew Keen pode entender
muito de empreendedorismo digital, mas para explicar os impactos sociais com
equilíbrio e muita reflexão..... o buraco é mais embaixo!
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