segunda-feira, 27 de julho de 2015
A Voz do Brasil: 80 anos de uma tradição inventada (Juliana Almeida*)
No universo das minhas leituras, me deparo com um livro organizado por Eric Hobsbawm e Terence Ranger com o instigante título “A invenção das tradições”. O livro traz uma coletânea de textos de historiadores sobre diversas tradições que foram ‘inventadas’ no sentido de perpetuar alguns comportamentos através da repetição. Dá pra imaginar que o famoso saiote escocês, chamado de kilt e associado aos guerreiros antigos da cultura celta, na verdade surgiu de um passado forjado? Pois é, esse é um dos discursos que os pesquisadores acabaram desmistificando. Um longo assunto que trataremos em outra oportunidade. Mas, cruzando os trópicos, cá estamos nós em terras tupiniquins e eis que temos nossas tradições também inventadas para perpetuar – através da formalização institucional – determinadas práticas. Mas, se por tradição entendemos costumes, o que é então esta tradição inventada? Na introdução do livro, Hobsbawm se preocupa em contextualizar essas definições. A tradição como sinônimo de costume é criada de forma espontânea e acaba mudando com o passar do tempo, assim como às relações sociais, já as tradições ‘inventadas’ são nas palavras de Hobsbawm: “um conjunto de praticas, normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente; uma continuidade em relação ao passado.” Ao ler tal definição me veio à mente a nossa famosa e quase muda Voz do Brasil. O mais antigo programa radiofônico brasileiro faz 80 anos no dia 22 de julho. Amado por alguns, odiado por outros tantos, o programa vem tentado sobreviver a uma enxurrada de ações para continuar no ar. A Advocacia Geral da União tem tido muito trabalho para reverter às ações de Norte a Sul do país pela flexibilidade no horário da transmissão. No dia 27 de janeiro de 2012, por exemplo, a AGU conseguiu cassar uma liminar que autorizava uma rádio no Rio de Grande do Sul a transmitir jogos de futebol no horário oficial do programa. Isso, menos de uma hora depois de a liminar ter sido obtida pela emissora. Outras emissoras têm sucesso, como a Rádio Bandeirantes de São Paulo, que transmite o programa de madrugada. A Voz do Brasil surgiu durante o regime de Getúlio Vargas - que não era bobo - e logo percebeu a influência, a abrangência e o interesse que o rádio despertava na sociedade – principalmente na população analfabeta que não tinha como ler os jornais. É bom lembrar que a televisão chegou ao Brasil em 1950 e até lá o rádio era o meio de comunicação que atingia, realmente, a massa. Assim como Hitler, Getúlio percebeu o potencial do rádio na propagação da ideologia do governo e investiu pesado, inclusive encampando várias emissoras nos anos 30. Primeiro teve o nome “Programa nacional”, em 1939, já com o Estado Novo, o programa foi rebatizado como “A hora do Brasil” e tornou-se transmissão obrigatória das emissoras. De lá para cá, mudou novamente de nome, mas manteve o horário e a obrigatoriedade além de invocar o nacionalismo romântico dos acordes da abertura da ópera “O guarani”, de Carlos Gomes. Nos últimos anos, o programa passou por mudanças, como a infeliz que profanou a música de Carlos Gomes no ritmo de axé, samba, choro e até forró, mas procurou tirar o ‘ar’ autoritário que sempre perseguiu as transmissões para um ‘ar’ mais cidadão com a participação de vários órgãos federais, um texto mais leve e reportagens especiais. Não há dúvidas que 'A Voz do Brasil' é uma aula técnica de radiojornalismo, mas o conteúdo precisa ter um caráter menos oficial (mesmo com as tentativas que são feitas) e, diante das mudanças proporcionadas pela evolução dos meios de comunicação, quem sabe a possibilidade de ter horário flexibilizado faça com que o ouvinte a ouça de forma espontânea, sem a carga dolorosa da obrigatoriedade.
*Jornalista e doutoranda em Sociologia PPGS/UFS
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