domingo, 18 de outubro de 2015

Dos livros necessários: 'Além do bem e do mal'


Há anos tento ler Friedrich Nietzsche. Ainda na adolescência cheguei a ler duas biografias mas, nunca me senti inteligente o suficiente para chegar aos seus livros… a essência da sua corrosiva filosofia. Em momentos rebeldes, ainda passeei por “Anticristo: a maldição do cristianismo” mas não conseguia entender as entranhas da sua linguagem.
Eis que no doutorado me deparo com “Além do bem e do mal”. Precisava dar uma aula na disciplina de um professor-sociológo-filosófo alemão…. Sim! Iria falar para um conterrâneo de Nietzsche. Mergulhei em seu mundo. Confesso que saí bem diferente. Ninguém lê o texto de Nietzsche e sai do mesmo jeito que começou.
'Além do Bem e do Mal' é uma obra inesgotável. Nietzsche o permeia de razão mas, sobretudo, de emoção ao provocar nos leitores profunda imersão em suas reflexões muitas vezes ácidas, muitas vezes poéticas. É quase impossível ler Nietzsche e ficar à margem dele.
Um dos temas principais do livro é uma crítica à precariedade cultural e espiritual do seu tempo. Ele afirma a necessidade de que, no eterno retorno da vida e da história humana, os homens se ergam, aceitando a própria finitude, ultrapassando a própria condição e vivendo soberanamente no gozo e na dor da própria verdade. Começa o livro fazendo uma reflexão sobre a verdade, ou melhor, a vontade da verdade já que é preciso questionar o valor dessa vontade. Assim, faz uma crítica à crença fundamental da metafísica na oposição de valores, na medida em que, a verdade é ofuscada pela aparência, à vontade do engano, ao egoísmo e a cobiça. Os juízos mais falsos são indispensáveis: renunciar a esses juízos é renunciar a vida. A filosofia que se atreve a enfrentá-lo está além do bem e do mal.
Nietzsche faz uma severa crítica aos estoicos na perspectiva destes de viver conforme a natureza. Na verdade viver é absolutamente o oposto disso. Viver é avaliar, preferir, ser injusto, ser limitado e querer ser diferente. A filosofia é um impulso tirânico, a mais espiritual vontade de poder (capacidade, autoridade, domínio) – toda força propulsora. Assim, a própria vida é a vontade de poder.
Nietzsche diz que o homem vive acomodado em um mundo simplificado e falso. É nesse terreno de ignorância que a ciência estabelece a vontade de saber sobre a base de uma vontade mais forte: a vontade de não saber. A ciência busca prender a esse mundo simplificado, completamente fabricado. Assim, todo homem seleto procura se salvar da multidão, onde possa esquecer a regra homem enquanto exceção a ela, toda companhia é má, exceto a companhia dos iguais.
Com relação às virtudes, Nietzsche diz que o que é alimento para um homem superior deve ser quase veneno para um tipo menor. As virtudes de um homem vulgar talvez significassem fraqueza e vício num filósofo. Um homem de alta linhagem, se degenerar ou sucumbir, adquire qualidades que o levariam a ser venerado como um santo, não se deve frequentar igrejas quando se deseja respirar ar puro. Só a 'vontade de poder' que obriga ao homem se deter na frente do santo, ou seja, interrogá-lo.
No último capítulo do livro, Nietzsche faz a pergunta: o que é nobre? Nesse momento ele vai melhor descrever sua concepção sobre a moral dos senhores e a moral dos escravos. Portanto, a moral dos senhores, entre outras características, é originada dentro de uma espécie dominante. Despreza os seres que divergem dos estados de elevação e orgulho. A oposição entre 'bom' e 'ruim' é 'nobre' e 'desprezível'. Despreza-se o covarde, o medroso, o mesquinho – não é a moral das 'ideias modernas'.
Ele quis libertar o homem…. para isso, nos dá todas as direções do tortuoso caminho:

É preciso testar a si mesmo, dar-se provas de ser destinado à independência e ao mando; e é preciso fazê-lo no tempo justo. Não se deve fugir às provas, embora sejam porventura o jogo mais perigoso que se pode jogar e, em última instância, provas de que nós mesmos somos as testemunhas e os únicos juízes. Não se prender a uma pessoa: seja ela a mais querida – toda pessoa é uma prisão, e também um canto. Não se prender a uma pátria: seja ela a mais sofredora e necessitada – menos difícil é desatar de uma pátria vitoriosa o coração. Não se prender a uma compaixão: ainda que se dirija a homens superiores, cujo martírio e desamparo o acaso nos permitiu vislumbrar. Não se prender a uma ciência: ainda que nos tente com os mais preciosos achados, guardados especialmente para nós. Não se prender a seu próprio desligamento, ao voluptuoso abandono e afastamento do pássaro que ganha sempre mais altura, para ver mais e mais coisas abaixo de si: - o perigo daquele que voa. Não nos prendermos às próprias virtudes e nos tornarmos, enquanto todo, vítimas de uma nossa particularidade, por exemplo, de nossa hospitalidade: o perigo por excelência para as almas ricas e superiores, que tratam a si mesmas prodigamente, quase com indiferença, exercitando a liberdade ao ponto de torná-la um vício. É preciso saber preservar-se: a mais dura prova de independência” (Friedrich Nietzsche)

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