segunda-feira, 27 de julho de 2015

A presença de Narciso nas águas do Facebook (*Juliana Almeida)

Quem nunca ouviu falar no mito de Narciso e Eco? O caminho percorrido desde a cultura grega antiga até o século XXI trouxe uma atualização quase que orgânica desse mito, seja em aspectos sociais ou como parafrenias. A trágica história do belo homem, Narciso (tema narkhé = torpor, como em narcótico para nós) é uma importante representação da vaidade humana. Admirado com sua própria imagem em um lago, o jovem pensa trata-se de algum espírito das águas. Não se contendo, baixa o rosto para beijar o seu reflexo e mergulha os braços para abraçar-se, mas o contato com a água faz sua imagem sumir e ele se sente desprezado. Dessa forma, Narciso ficou dias a admirar sua própria imagem na fonte. Sem comer ou beber seu corpo definha. A beleza e o vigor deixaram-no e assim Narciso morreu. A história do mito se completa com a sombra de Narciso atravessando o rio Estige, em direção ao Hades, e ela ainda debruça-se sobre suas águas para contemplar sua figura. O mito de Narciso influenciou muitos artistas ao longo dos séculos. Nas artes plásticas, há pinturas de Caravaggio, Nicolas Poussin, Turner, Salvador Dalí e Waterhouse. Na literatura, encontram-se várias passagens na obra do russo Fiódor Dostoevsky e na a obra do escritor inglês Oscar Wilde - o romance ‘Retrato de Dorian Gray’ seria uma representação do homoerotismo retratado no narcisismo. Os estudos psicanalíticos do narcisismo tomaram verdadeiro impulso com Freud em seu artigo intitulado ‘Introdução ao Narcisismo’. As primeiras observações do ‘pai da psicanálise’ procuram identificar a origem do narcisismo como um investimento libidinal do ego. O sociólogo e historiador americano, Richard Sennett, observou que o narcisismo social se potencializa, na medida em que, as relações sociais encorajam o crescimento da valorização do 'eu' e anula o senso de contato social significativo fora dos seus limites. Na sociedade intimista os atores são mais importantes do que as ações, ou seja, o que é mais relevante não diz respeito ao que a pessoa fez, mas, como se sente a respeito do feito. Ele ainda destaca que esse narcisismo atua nas relações sociais porque há uma cultura privada de uma crença no público e que é orientada por um sentimento intimista como parâmetro de significação da realidade. Os ‘narcisos’ contemporâneos encontraram outras águas para navegar. O reflexo da imagem no lago deu lugar ao ecrã dos computadores, tablets, smartphones e tudo que possa incorporar a cultura do compartilhamento. Grandes sociólogos e historiadores já chamavam a atenção para o excesso de exposição da intimidade na vida pública muito antes da internet, desde o século XVIII, mas, certamente, a ‘era’ digital trouxe uma espécie de contágio viral da necessidade de se tornar diferente, se destacar. Claro que tudo está ligado a sociedade de consumo. O consumo e o narcisismo que revolucionam esferas cultuais e comportamentais, devem ser pensado não apenas como um espelhos da vaidade individual, mas como podem representar mudanças significativas nas relações sociais. Isso é um passo importante na percepção de como esse espectro pode interessar diretamente ao entendimento das sociabilidades contemporâneas. A possibilidade de ‘ver’ e ter ‘visibilidade’ pelas redes sociais digitais amplia significativamente comportamentos de diferenciação social e de referência. Assim como o culto ao corpo e o desenvolvimento de práticas narcísicas, a sociedade de consumo busca, incessantemente, estratégias para vender padrões de satisfação. O grande sociólogo e filósofo francês, Jean Baudrillard, traz uma interessantíssima discussão sobre o mito da felicidade e igualdade na sociedade contemporânea que acaba adquirindo uma característica particular ao ter que tornar-se mensurável. Dessa forma, a felicidade e o bem-estar são dimensionados pelos signos e objetos que possam ser vistos. Mesmo sendo uma necessidade individual, a felicidade se fundamenta em propósitos visíveis. O que toda essa discussão tem a ver com o Facebook? Tudo! Como uma grande vitrine, essa rede social – com seus mais de um bilhão de usuários no mundo - tem servido como um reflexo das manifestações narcísicas contemporâneas de contemplação física ou intelectual, além de reforçar estereótipos de beleza através da publicização do consumo material e simbólico. Não só na time line é possível fazer esse tipo de constatação, mas também nas fanpages que se proliferam com um número bastante significativo de seguidores. Páginas como: Fina e Rica; Bonita é você, EU SOU LINDA; Homens gostosos; As + gostosas do FACE apresentam milhares de ‘curtidas’ e reforçam o estereótipo de homens e mulheres magros, sarados, felizes e, acima de tudo, bem sucedidos. O desenvolvimento e popularização do Facebook estabeleceu um fenômeno de criação de ‘modas’ que potencializam a exploração da imagem na rede. Trata-se de duas formas de tirar foto para colocar na rede social: O selfie (um autorretrato onde, com o braço esticado para si, o usuário consegue tirar sua própria foto) e, mais recentemente, o braggie (fotos postadas na rede com a finalidade exibicionista para provocar inveja nos amigos e parentes.). Para se ter uma ideia da dimensão do braggie, foi feita uma pesquisa no Reino Unido e verificou-se que cerca de 5,4 milhões de usuários de redes sociais digitais no país postam esse tipo de foto, sejam elas tiradas em viagens, festas ou na intimidade. Um dado interessante é que sete em cada dez usuários da rede admitiram que manipulam as fotos antes de postá-las: 5% dos homens editam as imagens para parecerem mais magros, contra 2% das mulheres. Portanto, o braggie reforça o consumo e o exibicionismo como forma de distinção social. Ainda segundo a pesquisa as poses mais comuns do braggie são: praia (43%), com bebidas (12%) e os beicinhos para as lentes (3%). Esse caráter efêmero da sociedade contemporânea gera a chamada paixão consumptiva (um tipo de paixão que se extingue em sua própria intensidade) pelas coisas e traz uma força dramática já que o desejo é muito maior do que o sentimento de posse. Por exemplo, nosso desejo de determinada roupa pode ser ardente, mas alguns dias depois de comprá-la e usá-la, ela já não nos entusiasma tanto, ou seja, a imaginação é mais forte na expectativa. E assim as relações vão se construindo. É claro que nem todos os usuários da rede apresentam esse comportamento. Estamos falando de algo bastante recorrente e de total conhecimento de quem acessa cotidianamente o Facebook, por exemplo. Uma pesquisa feita por mim com estudantes universitários para a dissertação de mestrado mostrou que essa imagem pública mediatizada pelo Facebook traz um retorno de visibilidade. Cerca de 48% dos entrevistados disseram se incomodar quando os amigos do Facebook não curtem ou comentam suas fotos. Isso reflete uma necessidade de atenção, ou seja, como uma espécie de ‘vitrine’, o Facebook também é visto como um espelho de aprovação e popularidade. Portanto, no ambiente livre da internet é tolerável dizer aquela verdade que se pensa saber, assim como há possibilidade de expressar visões intolerantes; omitir o que se julga ser verdade e criar simulacros de si e das coisas. Nesse espaço o narcisismo e o consumo simbólico se potencializam para aceitação grupal ou são refutados, embora reconhecidos, como um estilo de vida contemporâneo. Qualquer um pode ser possuído pelo espírito de Narciso no lago virtual e tão presente da internet. Mas cuidado! Como bem disse Caetano Veloso, “Narciso acha feio o que não é espelho” e há sempre o risco de se afogar em sua própria vaidade. *Jornalista, mestre e doutoranda em Sociologia PPGS/UFS

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