quarta-feira, 20 de junho de 2018

Teoria da Complexidade em Edgar Morin


Iniciando às leituras sobre a Teoria da Complexidade de Edgar Morin, me deparo com uma problematização sobre a ciência, objetividade, verificações empíricas, racionalização. Morin nos convida a pensar a complexidade além de um conceito inicial pensado a partir da complicação, isto é, uma sinergia entre ação, interação, retroação. A complexidade é bem mais profunda. Traz ambivalências do pensar, problematizar, na medida em que, a objetividade é o elemento primeiro e fundador da verdade e da validade das teorias científicas. Mas, mesmo essa objetividade é fruto de um consenso sociocultural e histórico da comunidade científica.
Ora, se a objetividade científica é fruto de convenções socioculturais é perfeitamente possível pensar a objetividade como fruto de uma subjetividade que não exclui o espírito humano, o sujeito individual, a cultura, a sociedade. Morin descreve as teorias como subjetivas-objetivas porque tratam de dados objetivos mas são construções, sistemas de ideias que são aplicadas ao mundo real para detectar as estruturas invisíveis, já que a ciência não se interessa pelo óbvio e sim pelo oculto.
Morin faz uma crítica ao abismo criado entre a ciência, com sua racionalidade tecno-científica, e o humanismo. O autor defende o a necessidade das ciências naturais e a sua importância social, bem como a conscientização das ciências humanas, físicas e biológicas para entender a complexidade  da realidade.
Ora, o problema da complexidade não é o de estar completo, mas sim do incompleto do conhecimento. Num sentido, o pensamento complexo tenta ter em linha de conta aquilo de que se desembaraçam, excluindo, os tipos mutiladores de pensamento a que chamo simplificadores e, portanto, ela luta não contra o incompleto mas sim contra a mutilação. Assim, por exemplo, se tentarmos pensar o fato de que somos seres simultaneamente físicos, biológicos, sociais, culturais, psíquicos e espirituais, é evidente que a complexidade reside no fato de se tentar. conceber a articulação, a identidade e a diferença entre todos estes aspectos, enquanto o pensamento simplificador ou separa estes diferentes aspectos ou os unifica através de uma redução mutiladora. Portanto, nesse sentido, é evidente que a ambição da complexidade é relatar articulações que são destruídas pelos cortes entre disciplinas, entre categorias cognitivas e entre tipos de conhecimento. De fato, a aspiração à complexidade tende para o conhecimento multidimensional. Não se trata de dar todas as informações sobre um fenômeno estudado, mas de respeitar as suas diversas dimensões; assim, como acabo de dizer, não devemos esquecer que o homem é um ser bio-sociocultural e que os fenômenos sociais são, simultaneamente, econômicos, culturais, psicológicos, etc. Dito isto, o pensamento complexo, não deixando de aspirar à multidimensionalidade, comporta no seu cerne um princípio de incompleto e de incerteza” (MORIN, 1994, p. 138).

Portanto, a complexidade não trata-se da simplificação porque o conhecimento não é um reflexo ou uma reprodução fiel da realidade, mas, é uma tradução seguida de uma reconstrução que sofre influência de diversos fatores relacionados no tecido social.

Referência
MORIN, Edgar. O problema epistemológico da complexidade.

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

EROS E CULTURA DIGITAL: EXPOSIÇÃO, INTIMIDADE E CONSUMO NAS SOCIABILIDADES EM REDE

Uma das maiores preciosidades que os gregos deixaram para a humanidade temos, sem dúvida, a sua mitologia. Milhares de anos depois, seus mitos são sempre revisitados, reinterpretados e atualizados. Narciso e Eros são frequentemente evocados para explicar fenômenos que vão da psicologia a comportamentos da sociedade de consumo. São dois referenciais de beleza e amor, muitas vezes destrutivos.
O mito de Narciso e Eco é uma tragédia que surgiu na Grécia antiga e que, diante das representações do narcisismo nas artes e na cultura, se desenvolveram vários estudos na área da psicanálise e sociologia para entender até que ponto o narcisismo influencia comportamentos na sociedade contemporânea. O nome Narciso (tema narkhé = torpor, como em narcótico para nós) é uma importante representação da vaidade humana. O mito traz a história trágica envolvendo a ninfa Eco e o caçador de extrema beleza Narciso.
Narciso - Caravaggio
Diz o mito que Narciso era filho do deus Cephisus e da ninfa Liríope. Ele despertava muita cobiça nas ninfas e donzelas, mas vivia só, pois não encontrava alguém que merecesse seu amor. E foi justamente esse desprezo pelas mulheres e a fascinação por sua imagem que o levou à morte. Havia uma ninfa, chamada Eco, que tinha o defeito de falar demais e costumava sempre repetir a última palavra em qualquer conversa. A ninfa Eco foi amaldiçoada pela deusa Hera condenado-a a não mais falar por iniciativa própria e só responder quando fosse interpelada. Ela se apaixona perdidamente por Narciso, mas é repelida pelo jovem que não a julga digna do seu amor. Depois desse acontecimento, a ninfa passa a viver nas cavernas e definha até a morte. Seus ossos se transformam em pedra e nada resta além da sua voz.
Comovido pelo sofrimento da ninfa, o deus Nêmeses pune Narciso e o induz a beber água numa fonte onde era possível ver o seu reflexo na água. Admirado com sua própria imagem, o jovem pensa trata-se de algum espírito das águas. Não se contendo, baixa o rosto para beijar o seu reflexo e mergulha os braços para abraçar-se. O contato com a água faz sua imagem sumir e ele se sente desprezado. Dessa forma, Narciso ficou dias a admirar sua própria imagem na fonte. Sem comer ou beber seu corpo definha. A beleza e o vigor deixam-no e quando ele gritava "Ai, ai", Eco respondia com as mesmas palavras. Assim Narciso morreu. A história do mito se completa com sombra de Narciso atravessando o rio Estige, em direção ao Hades, ela ainda debruça-se sobre suas águas para contemplar sua figura.
O mito de Narciso influenciou muitos artistas ao longo dos séculos. Nas artes plásticas, há pinturas de Caravaggio, Nicolas Poussin, Turner, Salvador Dalí e Waterhouse. Na literatura, encontram-se várias passagens na obra do russo Fiódor Dostoevsky e influenciou a obra do escritor inglês Oscar Wilde. Os estudos psicanalíticos do narcisismo tomaram verdadeiro impulso com o Freud em seu artigo intitulado ‘Introdução ao Narcisismo’. As primeiras observações de Freud  procuram identificar a origem do narcisismo como um investimento libidinal do ego. Para Freud os instintos autoeróticos são fundamentais mas há algo que se acrescenta a esse autoerotismo para se formar o narcisismo.
O indivíduo tem uma dupla existência: “com fim em si mesmo e como elo de uma corrente, à qual serve contra, ou, de todo modo, sem a sua vontade”. Na primeira o indivíduo vê a sexualidade nele mesmo e a outra há uma projeção onde ele colocará suas forças. Algumas vias são destacadas por Freud que intervêm nessa relação da sexualidade – projeção para aproximar o conhecimento do narcisismo: consideração da doença orgânica, da hipocondria e da vida amorosa dos sexos. Na doença orgânica o indivíduo recolhe seus investimentos libidinais de volta para o Eu, até a melhora da enfermidade. Na hipocondria, as sensações físicas são muito dolorosas e influenciam no efeito da libido.
 A figura simbólica de Narciso, como uma espécie de culto da intimidade, cresce do colapso e não da afirmação da personalidade. Lasch apresenta como características do narcisismo a pseudo auto percepção, sedução calculada, humor nervoso e autodepreciativo. Para o autor, Há conexões entre o tipo de personalidade narcisista e certos padrões característicos da cultura contemporânea, tais como o temor intenso da velhice e da morte, o senso de tempo alterado, o fascínio pela celebridade, o medo da competição, o declínio do espírito lúdico, as relações deterioradas entre homens e mulheres. Lasch ainda aponta que o narcisismo chama a atenção porque os narcisistas alcançam posições de proeminência. Apesar de todo o seu sofrimento íntimo, o narcisista possui muitos traços que permitem o sucesso em instituições burocráticas, as quais valorizam a manipulação de relações interpessoais, desencorajam a formação de ligações pessoais profundas e, ao mesmo tempo, dão ao narcisista a aprovação que ele precisa para validar sua auto-estima.
Na sociedade contemporânea, as imagens fantasísticas são a tônica das relações de consumo e as inflexões dos meios de comunicação contribuem para a produção e reprodução de simulacros. Adorno  faz uma crítica a indústria cultural e a cultura de consumo destacando que se aproveita da fraqueza do ego narcísico dos consumidores, pois se mantém através de uma pseudo-satisfação. Outro ponto de destaque é que a indústria cultural aniquila a determinação do sujeito enquanto indivíduo, na medida em que, massifica os conteúdos e impõe barreiras para ver além do que interessa a coletividade.

AMORE E PSICHE, ANTONIO CANOVAS

Em Eros há algo que envolve mistérios que serviram de base para o desenvolvimento social do erotismo. O mito de Eros e Psiquê trata do amor que tudo suporta. Psiquê, uma linda mortal acaba despertando a ira da deusa Afrodite. Afrodite enviou, então, seu filho Eros (cupido) para fazer com que Psiquê se apaixonasse pelo homem mais feio e vil que existisse. Acontece que Eros acaba se apaixonando por Psiquê, e os dois casam, sem que, porém, Psiquê pudesse ver o rosto do marido, para que pensasse que esse casamento era um castigo dos deuses. Depois de resistir por algum tempo, Psiquê acabou por quebrar as regras impostas e viu o rosto de Eros que, enfurecido, abandonou-a. Mas seu amor por Eros era tão intenso que a fez procurar Afrodite para pedir-lhe que intercedesse por ela, ajudando-lhe a encontrar Eros. Afrodite impôs-lhe vários sacrifícios e tarefas. Ela vence todas as tormentas e casa-se com Eros. Essa união resultou ainda no nascimento de seu filho Voluptas (Prazer).
 O filósofo sul coreano Byung-Chul Han, vem chamando a atenção para o que ele chama de “a agonia de Eros”. Em pleno início do século XXI vivemos a sociedade dos excessos, da exposição sem mistério, do apelo escancarado que não dá espaço para a imaginação. Tudo se transforma em objeto de consumo. O narcisismo, por exemplo, não é amor próprio. O narcisista não pode fixar claramente seus limites, tudo tem que girar em torno do Eu. “Vivimo em uma sociedade que se hace cada vez más narcisista. La libido se invierte sobre todo em la propia subjetividade. El narcisismo no es ningún amor próprio. El sujeto del amor próprio empreende uma dilimitación negativa frente al outro, a favor de sí mismo. Em cambio, el sujeto narcisista no puede fijar claramente sus limites. De esta forma, se diluye el limite entre él y el outro. El mundo se le presenta solo como proyecciones de sí mmismo de algún modo. Deambula por todas partes como uma sombra de spi mismo, hasta que se ahora em sí mismo” (HAN, 2014, p. 05).
Acontece que o sujeito narcisista-depressivo está esgotado e fatigado em si mesmo. Como isso é possível? Han diz que o corpo, com seu valor de exposição, equivale a uma mercadoria. Não há nenhuma ‘personalidade’ sexual. Se o outro se percebe como um objeto sexual, se desfaz aquela ‘distância original’ que impede que o outro se coisifique como um objeto. Pelos meios de comunicação digitais, tenta-se destruir as distâncias frente ao outro. Onde tudo é possível, não há amor como ferida e paixão. O amor e a sexualidade têm um preço. Suprime-se um desejo dirigido ao ausente. Aí onde Eros começa a agonizar. 

“El amor se positiva hoy como sexualidade, que está sometida, a su vez, ao dictado del rendimento. El sexo es rendimento. Y la sensualidade es um capital que hay qye aumentar. El cuerpo, com su valor de exposición, equivale a uma mercancia. El outro es sexualizado como objeto excitante. No se puede amar al outro ya no es uma persona, pues há sido fragmentado em objetos sexuales parciales. No hay nunguna personalidade esual” (HAN, 2014, p. 13).

 A ética de Eros certamente não contempla os abismos de um erotismo que se manifesta como excesso e loucura, mas chama a atenção com insistência para a negação do outro, que está em vias de desaparecer em uma sociedade que se mostra cada vez mais exibicionista. Han fala de um amor domesticado que serve como fórmula para o consumo, como um produto sem atrevimento, sem excessos. Não há transcendência e nem transgressão. Somos sujeitos incapazes de concluir a vida. As imagens pornôs, por exemplo, mostram uma mera vida exposta. O pornô é a negação de Eros. Aniquila a sexualidade em si mesma. O obsceno no pornô não consiste no excesso de sexo, já que ali não há sexo. A sexualidade não está armazenada nessa ‘razão pura’. Para o filósofo, “a transformação do mundo em pornô se realiza com a sua profanação” (HAN, 2014, p. 25). Essa profanação se materializa com a desritualização e dessacralização. A “cara” pornográfica não expressa nada, não há expressividade e mistério.
A imaginação de internet parte de uma acumulação de atributos, mais do que uma visão global do objeto e, nesta configuração específica, as pessoas dispõem de menos dados, parecem menos capazes de idealizar. Sua imaginação está determinada pelo consumo. Os novos meios de comunicação não dão precisamente a fantasia. Mas, uma grande quantidade de informações, sobretudo visuais. A hipervisibilidade não é vantajosa para a imaginação. Assim, o pornô, que de certo modo leva ao máximo a informação visual, destrói a fantasia erótica. 

Pero la desnudez, como exhibición, sin mistério ni expresión, se acerca a la desnudez pornográfica. Tampoco la cara pornográfica expressa nada. Carece de expresividad y de mistério: de uma figura a la outra, de la seducción al amor, luego al deseo y a la sexualidade, finalmente al puro y simple pornô, cunato más se avanza, más adelantamos em el sentido de um secreto menos, de um enigma menor. Lo erótico nunca está libre de mistério. La cara cargada com valor de exposición hasta estalar no promete ‘ningún uso nuevo, colectivo de la sexualidade. La exposición aniquila precisamente toda possibilidade de comunicación erótica. Es obscena y pornográfica la cara desnuda, carente de mistério e expresión, reducida exclusivamente a su estar expuesta. El capitalismo intensifica el progresso de lo pornográfico em la sociedade, em cuanto lo expone todo como mercancia y lo exhibe. No conoce ningún outro uso de la sexualidade. Profaniza el Eros para convertirlo em pornô”. (HAN, 2014, p.27)

 Platão disse que Eros se dirige a alma e tem poder sobre todas as suas partes: desejo (epithymia), valentia (thymos) e razão (logos). Cada parte da alma tem sua própria experiência do prazer e interpreta o belo de forma própria em cada caso. Essas três características agem articuladas. Na sociedade do consumo essa balança desequilibra pelas práticas de exposição e narcísicas. Vemos o fim da felicidade amorosa com uma prova de que o tempo pode abrigar a eternidade..

* Juliana Almeida


Referências

ADORNO, T. W. Mínima Moralia (1951). São Paulo: Ática, 1992
FREUD, Sigmund. Introdução ao Narcisismo, ensaios da Metapsicologia e outros textos (1914-1916). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
HAN, Byung-Chul. La agonia del Eros. Barcelona: Herder Editorial, 2014.
LASCH, C. A cultura do narcisismo: a vida americana numa era de esperanças em declínio. Rio de Janeiro: Imago, 1983. 

sexta-feira, 26 de maio de 2017

Damnatio ad bestias: o novo Coliseu se chama Facebook

Quem não conhece alguém que, de alguma maneira, sofreu um linchamento público no Facebook, atire a primeira pedra. Uma vidraça de grande alcance que tem os tentáculos quase infinitos pela cultura do compartilhamento. A popularização da rede descentraliza a informação, destaca os indivíduos que agora têm a possibilidade de se expressar, ser “ouvido” e reverberar as informações e opiniões. Desde 2011, o Facebook tem sido um canal mobilizador de muito sucesso. A Primavera Árabe só foi possível graças a ele e ao Twitter. Mas quando uma rede social passa a ser arena de guerra e, o pior, de linchamento público sem chance de defesa?
Tenho um professor que diz que o Facebook “abriu às portas do inferno” e não vejo isso com exagero. Liberdade de expressão é principio constitucional. Mas a intolerância, o pré julgamento, a pressa em informar, opinar, destruir reputações encontraram um canal para ecoar o que temos de pior.
Ronaldo Lemos, no livro “A vida em rede” fala sobre a sua preocupação de como o Facebook tem se tornado uma espécie de Coliseu onde cada semana, por exemplo, uma pessoa sofre uma espécie de linchamento público. “Às vezes o personagem público ou privado é escolhido e permanece, durante uma semana ou mais, no centro da esfera pública, sendo repreendido ou julgado e condenado pela multidão. Uma semana depois, todo mundo já esquece e é a vez de outro cidadão, totalmente diferente, ocupar a posição de dentro do Coliseu, e assim por diante."
Tempos estranhos, onde a história se repete a partir de outras ferramentas. A internet é a quarta evolução tecnológico-comunicativa e o Homo Tecnológicos não sabe lidar com os princípios básicos de civilidade. Começo efetivamente a concordar com o velho Bauman, “as redes são muito úteis, oferecem serviços muito prazerosos, mas são uma armadilha.” De resto é torcer para não ser a atração da vez, porque a multidão quer espetáculo!

quinta-feira, 2 de março de 2017

O mundo exposto: como entender a sociedade da transparência


Finalizando a minha saga para entender a filosofia de Byung-Chul Han, termino a leitura do seu terceiro livro “A Sociedade da Transparência”. Comecei a mergulhar no seu universo pelo livro “A Agonia de Eros” e depois fui para “Sociedade Cansada”. Han é, como todo filósofo, observador atento e problematiza seu tempo. Pontua elementos que vem transformando significativamente a sociedade e não apenas por causa da revolução digital.
Ele analisa, nesse livro, o que chama de ‘tempo transparente’, um tempo destituído de destino e de todo o conhecimento. Uma realidade desembaçada, sem mistério e negatividade que torna-se pornográfica. O dinheiro torna tudo comprável e a sociedade do consumo torna tudo “um inferno do igual”.
Han é um grande crítico dessa busca por transparência, operacionalidade que destitui qualquer tipo de ambivalência. O autor cita Richard Sennett para caracterizar a sociedade que necessita de papeis a serem executados. Uma representação tão necessária para a vida pública. A sociedade positiva não admite sentimentos negativos. O amor, por exemplo, é domesticado e positivado como fórmula de consumo e conforto.
Na sociedade exposta, cada sujeito se torna seu próprio objeto de publicidade. O valor da exposição é a medida de tudo, “tudo é entregue, nu, sem segredo, à devoração imediata”. Todos os rituais são eliminados porque se tornam um obstáculo à aceleração dos ciclos de informação, da comunicação e da produção. Claro que as redes digitais servem de análise para essa aceleração e evidência narcísica. Han cita, “Os social media e os motores de busca personalizados erigem na rede um espaço próximo absoluto, do qual o fora foi eliminado. É um espaço onde nos encontramos somente a nós mesmos e aos que se assemelham a nós. Não há qualquer negatividade que torne uma mudança possível. Esta proximidade  não apresenta ao participante senão essas secções do mundo a seu gosto. Desse modo, desintegra a esfera pública, a consciência pública, crítica, e privatiza o mundo. A rede transforma-se numa esfera íntima, ou numa zona de bem-estar. A proximidade, da qual toda a distância do longe foi eliminada, é também uma forma de expressão da transparência.”

Portanto, a hiperconectividade e a hiperinformação não traz mais luz e liberdade, muito pelo contrário, vivemos um outro tipo de panóptico. Nenhum muro separa dentro e fora mas, a vigilância se torna diferenciada. Não mais há um “ataque à liberdade”, hoje voluntariamente cada um se entrega ao olhar panóptico. Somos algozes e vítimas. É a dialética do presente.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Sociedade do cansaço


O título desse texto é igual ao do livro do filósofo sul coreano Byung-Chul Han, que chama a atenção para uma sociedade contemporânea baseada na positividade e hipervisibilidade. O livro é pequeno, mas de um conteúdo impressionante. Um verdadeiro raio X dos reflexos de uma mudança, ainda bastante imprevisível, de uma sociedade que transmuta da disciplina para o desempenho.
Han  alerta que estamos em uma sociedade que caracteriza-se pelo desaparecimento da alteridade e da estranheza. O estranho cede lugar ao exótico onde, por exemplo, os imigrantes são consideramos mais um peso do que uma ameaça. Vivemos uma violência da positividade, ou seja, a negatividade, a contestação perde espaço para uma transparência que muito mais vigia do que liberta. Vivemos tempos de superprodução, superdesempenho e supercomunicação... e não estamos dando conta disso!
A sociedade disciplinar de Foucault foi substituída pela sociedade do desempenho e produção. As pessoas são empresárias de si mesmas, mesmo trabalhando em fábricas, etc. A busca incessante pelo melhor desempenho pode garantir melhores posições, mesmo que isso custe, inclusive, a saúde mental. Para Han, a sociedade disciplinar era regida pela negatividade, pela proibição, coerção. A sociedade do desempenho se distancia dessa negatividade: o poder ilimitado, o “yes, we can” expressa o caráter da positividade. “No lugar da proibição, mandamento ou lei, entram o projeto, iniciativa e motivação. A sociedade disciplinar ainda está dominada pelo não. Sua negatividade gera loucos e delinquentes. A sociedade do desempenho, ao contrário, produz depressivos e fracassados”, diz Han.
Esse excesso de positividade também se configura em excessos de estímulos, informações e impulsos. A multitarefa não representa nenhum avanço civilizatório, muito pelo contrário, há uma preocupação maior em sobreviver (muito se aproxima de instintos selvagens) e perde-se o poder contemplativo, a tolerância ao tédio – visto de forma importante para o processo criativo. Ao citar Hannah Arendt, o autor compara a figura do animal laborans – animal trabalhador – moderno, ao animal laborans pós-moderno que individualiza-se na sociedade do desempenho. Ele pode ser tudo, menos passivo. É hiperneurótico e hiperativo.
Para o filósofo sul coreano é pura ilusão acreditar que quanto mais ativos somos, mais livres nos tornamos, “a sociedade do cansaço, enquanto sociedade ativa, desdobra-se lentamente numa sociedade de doping”. Esse cansaço da sociedade do desempenho é um cansaço solitário que individualiza e isola.
É importante pensar em tudo isso muito seriamente, as palavras de Byung-Chum Han saem do campo epistemológico e sentimos na prática, nesse cotidiano voltado para o desempenho. Como o autor bem diz, “o excesso de elevação do desempenho leva a um enfarto da alma”.... sim, para a OMS, por exemplo, são mais de 300 milhões de pessoas com depressão no mundo. Não se pode mais fechar os olhos para isso.
Chegamos ao ponto de materializar as palavras do escritor Peter Handke.... “eu não estou cansado de ti, mas cansado pra ti”. Viver não está sendo fácil!

  Por Juliana Almeida


quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

#vertigemdigital? Um olhar sobre o livro de Andrew Keen

Como professora de cultura digital, me vi na obrigação de ler o livro tão badalado de um dos empreendedores pioneiros do Vale do Silício, Andrew Keen. “#vertigemdigital: porque as redes sociais estão dividindo, diminuindo e desorientando” traz um panorama de que pensam os “cabeças” do Vale do Silício, criadores das redes sociais mais influentes do mundo. Entre citações filosóficas, delírios foucaultianos e devaneios cinematográficos de Hitchcock, Andrew Keen traça um perfil bem pessimista do desenvolvimento das redes sociais digitais, seus impactos na nossa privacidade e identidade. Confesso que a leitura não me convenceu.
O livro é uma mistura de diário de bordo e experiências vividas pelo autor que o inquietaram a ponto de escrever o livro. Diante do cadáver do filósofo iluminista Jeremy Bentham que, para atender sua vontade, tem seu corpo exposto no Autoícone, na Universidade Oxford, ele desperta para os perigos da exposição sem limites e como, ele mesmo, tenta frear seus impulsos de compartilhamento na rede.
O futuro do mundo é social. Isso é dito em todo o livro. Seria, inclusive, uma profecia feita por Mark Zuckerberg, criador do Facebook. E isso não será nada bom. Segundo Keen “a mídia social hoje estilhaça nossas identidades, de modo que sempre existimos fora de nós mesmo, incapazes de nos concentrar no aqui e agora, aferrados demais à nossa própria imagem, perpetuamente revelando nossa localização atual, nossa privacidade sacrificada à tirania utilitária de uma rede coletiva”.
Ora, nós ainda não vivemos em uma sociedade tecnocrata e ainda impomos nossa vontade sobre a tecnologia. Somos bastante influenciados, sim. Mas o poder ainda está em nossa decisão do tamanho da exposição que teremos. Essa visão determinista de Keen realmente me incomoda durante toda a leitura.
Que a sociedade em rede se tornou um “bacanal transparente’ eu ate concordo. Há excessos em tudo. Não temos mais o tempo e o espaço como regulador das nossas ações. Como bem diz Manuel Castells “são espaços de fluxos e tempo intemporal”. É um outro plano de realidade. Keen parte de conceitos e afirmações que não  deixam clara sua linha de raciocínio. Ao dizer que TUDO se  tornará social, não é o bastante para entender todos os malefícios que a revolução tecnológica nos espera.
Assim como a Revolução Industrial mudou o rumo da humanidade, a revolução tecnológica tá cumprindo o seu papel. Difícil prever o futuro. Difícil entender uma sociedade que sai do fordismo para, segundo David Harvey, atuar na acumulação flexível. Estamos no meio das mudanças onde o analógico e o digital se encontram. Não temos como avaliar tudo isso “friamente” porque a revolução está acontecendo agora.
A questão que envolve a privacidade não é discurso novo. Richard Sennett traz no seu maravilhoso livro “O declínio do homem público”, que a intimidade no século XVIII já era algo discutido e os limites entre o que é público e privado também.
Keen destaca que estamos desenvolvendo um comportamento de rebanho, na perspectiva do “compartilhamento sem atrito” possibilitado pelas redes sociais. Ora, o que a cibercultura nos proporciona é um encontro por afinidades, uma renovada forma de ‘tribalização’ do mundo. Não há fronteiras para estabelecer laços que, por sinal, são multifacetados, fracos e especializados.
Ao citar Karl Marx, “os homens fazem sua própria história, mas não a fazem segundo seus desejos; não a fazem nas circunstâncias  que eles mesmo escolhem, porém nas circunstâncias encontradas, dadas e transmitidas do passado”, Andrew Keen acaba ressussitando uma meta narrativa que o passado e o presente estão sempre em tensão e sempre recorremos à tradição para sustentar nossas práticas sociais.

Vivemos tempos líquidos, o velho Zigmunt Bauman já nos alertou. Há mudanças estruturais profundas. Não é uma visão rasa e apocalíptica que vai explicar toda sua complexidade. Dizer que as redes sociais estão cumprindo ou até substituindo o papel do Estado-Nação foi demais para o meu bom senso. Andrew Keen pode entender muito de empreendedorismo digital, mas para explicar os impactos sociais com equilíbrio e muita reflexão..... o buraco é mais embaixo!

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Mixofobia: você sabe o que é isso?

A vitória de Donald Trump nos Estados Unidos não estava no script. Ele passou de um bonachão excêntrico, midiático para presidente da nação mais rica do mundo. O planeta inteiro tenta entender o presente com sua eleição e o futuro incerto sob o seu comando. Mas algo chama a atenção e que não é novo nos estudos sociológicos mas, merece uma importante reflexão: a mixofobia.
Não é de hoje que o estranho incomoda. Temos exemplos trágicos na história que comprovam isso... o nazismo foi prova viva do que estou falando. Depois de Segunda Guerra Mundial, o mundo procurou ser mais tolerante através, por exemplo, de tratados como a Declaração Universal dos Direitos Humanos promulgada pela ONU em 1948 que estabelece, pela primeira vez, a proteção universal dos direitos humanos.
Vários discursos de Trump revelaram sua mixofobia, principalmente, com os latinos. Chegou a chamar os brasileiros de “porcos latinos” e que ia construir um muro na fronteira com o México e “os mexicanos iam pagar por ele”.  Isso assustou o mundo. O seu discurso foi escancarado.... e o pior de tudo, acolhido pelos eleitores americanos.
O sociólogo polonês Zigmunt Bauman trata com muita propriedade sobre à mixofobia e a mixofilia. Como as cidades e os próprios cidadãos, tão heterogêneos, convivem com multiculturalidade.  Em seu livro “Confiança e medo na cidade” ele traz os conflitos e a necessidade que temos de conviver com o estranho. “A mixofobia e mixofilia coexistem não apenas em cada cidade, mas também em cada cidadão. Trata-se, claramente de uma coexistência incomoda, mas, mesmo assim muito significativa”.
Em um mundo que se diz globalizado e hiperconectado não é possível pensar em barreiras de proteção, mesmo assim, conviver com o estranho é difícil. Precisamos ainda discutir questões de gênero, de raça e de religião em sociedades que se acham tão evoluídas. O fantasma dos ideais nazistas ainda ronda muitos lugares. O discurso de Trump apenas escancara o quanto o outro incomoda, mas, ironicamente, consumimos aquilo que o outro produz em várias partes do mundo. A lógica do capital é cruel.

No seu mais recente livro “Babel: entre a incerteza e a esperança”, Bauman nos alerta para o caminho perigoso que a sociedade contemporânea vem construindo “de maneira pendular, nós vamos da ânsia por mais liberdade à angústia por mais segurança”. Essa segurança pode ser entendida sob vários pontos de vista. Que a história não se repita.  

quarta-feira, 24 de agosto de 2016

A solidão conectada dos nossos dias

As sociabilidades em rede têm uma representação muito grande na projeção do individuo. É importante traçar um perfil daquilo que se define como ‘rede social’ para entender como a evolução das redes na internet tem características distintas das ‘redes de movimentos sociais’. Para tanto, trago a definição clássica da socióloga Scherer-Warren, onde uma ‘rede’ se compõe de princípios que permitem a comunicação, articulação e intercâmbio entre os atores sociais. Isso significa dizer que uma ‘rede’ é fundamental para se estabelecer relações sociais, sejam elas de caráter afetivo ou profissional. 

 A ‘rede’ significa integrar a diversidade, se alimenta das práticas cotidianas para reforçar padrões ou determinar comportamentos. Essa ‘rede’, em sua essência, não nasce nas relações dentro do ambiente da cibercultura, mas, há uma projeção dessas redes com características bem específicas que contribuem para a disseminação de comportamentos narcísicos, potencializar as relações de consumo e reforça uma solidão conectada. Manuel Castells, também destaca o conceito de ‘rede social virtual’ como interpessoal, em sua maioria baseada em laços fracos (diversificados ou especializados) e são capazes de gerar reciprocidade e apoio através da dinâmica de interação sustentada. O indivíduo nas sociabilidades em rede, geralmente, reflete uma projeção de si e dos outros. 

Isso, essencialmente, pode acarretar uma série de comportamentos que proporcionam a construção das relações sociais em torno de interesses comuns, deixando de lado comportamento de uma vida pública. Mas esta forma de sociabilidade tão contemporânea que é a mediada por computador ela aproxima ou isola as pessoas? Na verdade, as sociabilidades em rede ampliam e permitem a criação de laços com desconhecidos e possibilita comunicação e visibilidades mais rápidas, sem a necessidade de intermediação para que isso aconteça. A possibilidade de ‘ver’ e ter ‘visibilidade’ pelas redes sociais amplia significativamente comportamentos de diferenciação social e de referência do indivíduo. É na cultura urbana onde estão centradas as sociabilidades em rede. Mais de que elementos alternativos de comunicabilidades estão se tornando uma extensão de práticas do cotidiano que refletem uma realidade marcada por laços fracos e especializados. A comunicação mediada pelas TIC’s está promovendo uma efetiva mudança nas relações sociais, na medida em que, o espaço público é reconfigurado em torno dos interesses individuais. A construção da identidade no ciberespaço ocupa um lugar de destaque na cultura contemporânea. 

Não basta apenas ter um perfil na internet, mas percebe-se que se corrompem as fronteiras entre o real e o virtual, o eu e o múltiplo. As mudanças comportamentais sugerem porque o computador, o smartphone, o tablet, muito mais do que máquinas utilitárias, se transformaram em máquinas intimistas. A identidade na internet, em certa medida, liberta o sujeito de pressões socais e padrões estabelecidos. No ambiente livre da internet é possível dizer a verdade, omitir a verdade ou criar um simulacro de si mesmo seja para aceitação grupal, seja para potencializar uma imagem de si mesmo. É nesse contexto que as manifestações narcísicas e as práticas de consumo simbólico se constroem. Dessa forma, é necessário está cada vez mais presente na internet. Sejam nas paginas pessoais em redes sociais ou blogs, espécies de diários eletrônicos onde as informações mais íntimas, mais analíticas ou mais desnecessárias são constantemente acessadas. 

Mas, quais são os efeitos das sociabilidades em rede na relação com outras pessoas? A socióloga Sherry Turkle responde dizendo que o individuo contemporâneo está aprendendo a ver-se como ‘tecno-corpos’, ou seja, sempre ligado ao ciberespaço, há um desinteresse nos locais que costumava reunir pessoas como praças, associações e sedes de sindicatos. “Muitas pessoas passam o dia sozinhas, diante do ecrã de uma televisão ou de um computador. Ao mesmo tempo, como seres sociais que somos estamos tentando tribalizar-nos”. Ao se conectar com pessoas através de fóruns de discussão, redes sociais, correio eletrônico e outras possibilidades de comunicação imediata que são oferecidas pela internet com pessoas de várias partes do mundo, o enraizamento e a importância de determinado local se atenua. Dessa forma, as sociabilidades em rede adicionam o elemento da cultura do computador na percepção da identidade como multiplicidade. 

Assim, há espaço para que o indivíduo possa construir uma imagem de si mesmo alternando com personalidades diferentes. A capacidade de adquirir várias identidades on line ocasiona mudanças significativas na tentativa do indivíduo de compreender a si próprio. Nesse caminho a solidão conectada se constrói. O escritor Mia Couto traduz de forma significativa os dias atuais “Nunca o nosso mundo teve ao seu dispor tanta comunicação. E nunca foi tão dramática a nossa solidão. Nunca houve tanta estrada. E nunca nos visitamos tão pouco (...) É verdade que as novas tecnologias não costuram os buracos da nossa roupa interior, mas elas ajudam a alterar as redes sociais em que nos fabricamos.” É pra pensar....

sábado, 14 de maio de 2016

O radiodocumentário: criando imagens através do som

Já diz um professor do curso de radialismo da Universidade Federal de Sergipe (UFS), Sebastião Figueiredo, que o rádio é ‘teatro para cegos’. Isso é uma grande verdade! A linguagem radiofônica possui especificidades que exigem de quem está do lado de cá do microfone determinadas aptidões e técnicas para que a notícia seja bem entendida. Mais do que se ler uma notícia no rádio é preciso contar uma história e isso exige interpretação e utilização de recursos técnicos que auxiliem a compreensão da mensagem.
Catadoras de mangaba de Sergipe
O radiodocumentário, pode-se assim dizer, é a forma mais complexa de produção radiofônica porque exige do profissional uma apuração profunda dos fatos e uma sensibilidade técnica para utilizar os recursos sonoros adequados ao assunto que profundamente se quer explorar. Quando fiz o documentário “Catadoras de mangaba de Sergipe: como o associativismo pode garantir o sustento de uma comunidade extrativista”, vencedor do prêmio nacional de jornalismo do Sebrae 2012, na categoria radiojornalismo, muito mais de que coletar entrevistas e encaixá-las no texto, foi um grande desafio trazer para o rádio um universo que envolve a cultura da mangaba no Estado. O objetivo era não simplesmente retratar o trabalho dessas mulheres mas como a valorização do trabalho delas trouxe cidadania e elevou a autoestima. 
É importante também frisar que a mangaba faz parte da cultura dessas mulheres e existe tod
o um universo ligado ao patrimônio imaterial que é passado de geração para geração através dos cânticos populares. A mangaba é, por decreto, símbolo do estado de Sergipe. Elas vendiam o fruto in natura, de forma individual, e uniram forças para ampliar a renda ao fundar a Associação das Catadoras de Mangaba e Indiaroba (Ascamai). As catadoras também fizeram do movimento um front de luta pela preservação das mangabeiras que estão sendo reduzidas na região por causa da expansão imobiliária, da monocultura e do veneno derramado pelos tanques de criação de camarões. Elas lutam pela criação de uma reserva extrativista que possibilite a preservação da mangabeira e da tradicional cata do fruto. Procurei na matéria relatar as vitórias alcançadas pela Ascamai, com o projeto “Catadoras de Mangaba, gerando renda e tecendo vidas em Sergipe”, patrocinado pela Petrobras e desenvolvido em parceria com a Universidade Federal de Sergipe e Conselho Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional.
Por meio do projeto financiado pela Petrobras participaram de um vídeo-documentário sobre a vida delas e gravaram um CD com as cantigas que suas avós e mães cantavam enquanto catavam o fruto da mangabeira. A reportagem termina com trechos do canto das catadoras: “Vamos catar mangaba, vamos encapotar, o galho da mangabeira onde eu vou me balançar...” O radiodocumentário me possibilitou explorar esse universo tão rico e, acima de tudo, ter a oportunidade de dar visibilidade a uma comunidade muito carente, com a liberdade do rádio e os seus recursos que permitem o ouvinte ‘mergulhar’ no universo da história contada.

Ouça o documentário aqui: 


Artigo publicado no site da FITERT - maio/2013


quarta-feira, 6 de abril de 2016

A agonia de Eros e a cultura digital

Amore sulla Bilancia (Amor Sapientiae):
tarsia lignea del coro della Basilica di Santa Maria
 Maggiore in Bergamo
Uma das maiores preciosidades que os gregos deixaram para a humanidade temos, sem dúvida, a sua mitologia. Milhares de anos depois, seus mitos são sempre revisitados, reinterpretados e atualizados. Narciso e Eros são frequentemente evocados para explicar fenômenos que vão da psicologia a comportamentos da sociedade de consumo.
São dois referenciais de beleza e amor, muitas vezes destrutivos. Mas em Eros há algo que envolve mistérios que serviram de base para o desenvolvimento social do erotismo. Estou lendo o filósofo sul coreano Byung-Chul Han, que vem chamando a atenção dos estudiosos da cultura contemporânea para o que ele chama de “a agonia de Eros”.
Em pleno início do século XXI vivemos a sociedade dos excessos, da exposição sem mistério, do apelo escancarado que não dá espaço para a imaginação. Tudo se transforma em objeto de consumo. O narcisismo, por exemplo, não é amor próprio. O narcisista não pode fixar claramente seus limites, tudo tem que girar em torno do Eu.
 Acontece que o sujeito narcisista-depressivo está esgotado e fatigado em si mesmo. Como isso é possível? Byung-Chul Han diz que o corpo, com seu valor de exposição, equivale a uma mercadoria. Não há nenhuma ‘personalidade’ sexual. Se o outro se percebe como um objeto sexual, se desfaz aquela ‘distância original’ que impede que o outro se coisifique como um objeto.
Pelos meios de comunicação digitais, tentamos destruir as distâncias frente ao outro. Onde tudo é possível... não há amor como ferida e paixão. O amor e a sexualidade têm um preço. Suprime-se um desejo dirigido ao ausente. Aí onde Eros começa a agonizar.
A ética de Eros certamente não contempla os abismos de um erotismo que se manifesta como excesso e loucura, mas chama a atenção com insistência para a negação do outro, que está em vias de desaparecer em uma sociedade que se mostra cada vez mais exibicionista.
Byung-Chul Han fala de um amor domesticado que serve como fórmula para o consumo, como um produto sem atrevimento, sem excessos. Não há transcendência e nem transgressão. Somos sujeitos incapazes de concluir a vida. As imagens pornôs, por exemplo, mostram uma mera vida exposta. O pornô é a negação de Eros. Aniquila a sexualidade em si mesma. O obsceno no pornô não consiste no excesso de sexo, já que ali não há sexo. A sexualidade não está armazenada nessa ‘razão pura’. Para o filósofo, “a transformação do mundo em pornô se realiza com a sua profanação”.
Essa profanação se materializa com a desritualização e dessacralização. A ‘cara’ pornográfica não expressa nada, não há expressividade e mistério. A imaginação de internet parte de uma acumulação de atributos, mais do que uma visão global do objeto e, nesta configuração específica, as pessoas dispõem de menos dados, parecem menos capazes de idealizar. Sua imaginação esta determinada pelo consumo.
Os novos meios de comunicação não dão precisamente a fantasia. Mas, uma grande quantidade de informações, sobretudo visuais.  A hipervisibilidade não é vantajosa para a imaginação. Assim, o pornô, que de certo modo leva ao máximo a informação visual, destrói a fantasia erótica.
Platão disse que Eros se dirige a alma e tem poder sobre todas as suas partes: desejo (epithymia), valentia (thymos) e razão (logos). Cada parte da alma tem sua própria experiência do prazer e interpreta o belo de forma própria em cada caso. Essas três características agem articuladas. Na sociedade do consumo essa balança desequilibra pelas práticas de exposição e narcísicas. Vemos o fim da felicidade amorosa com uma prova de que o tempo pode abrigar a eternidade.

Eros agoniza em praça pública!!