sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Longe da poeira do tempo

- Renantique em 2010 -
 
 
Ao longo da história a humanidade sempre procurou formas de expressar não só sua criatividade, mas registrar através da arte a dinâmica da vida...seus amores, dores, cotidianos e, principalmente, sua fé. Na música temos as manifestações mais antigas. Muito pouco chegou até nós dos gregos, por exemplo, mas a partir da Idade Média temos um grande acervo de compositores europeus que retrataram as mais diversas situações na cultura ocidental: sim, são melodias que venceram a barreira do tempo e chegam a nós demonstrando toda a pujança e desenvolvimento da música através dos séculos e sua influência nas mais diversas culturas. Toda a beleza dos bestiários e cancioneiros medievais através dos poetas-músicos troubadours e trouvères, do Carmina Burana com suas canções revolucionárias dos monges errantes da Idade Média, as cantigas de Santa Maria de louvor e milagre do rei Afonso X, a riqueza libertária e polifônica das canções renascentistas e a criatividade sem limite da música sacra e profana, são exemplos do que podemos hoje apreciar.
Em Sergipe, na pequena terra dos cajus, temos a oportunidade de conhecer um pouco desse vasto universo da música antiga, produção musical da Idade Média e da Renascença. Um trabalho de intensa dedicação e estudo é feito pelo Conjunto de Música Antiga Renantique há 19 anos nas salas de concertos, teatros, igrejas e centros culturais. O grupo nasceu a partir de um quarteto de flauta doce no Centro de Criatividade, chamado Saltarello, em 1995. O fundador e diretor artístico do Renantique, Emmanuel Vasconcellos, lidera o trabalho de resgate e, acima de tudo, de estudo dos instrumentos e formas de execução das canções na perspectiva de fidelizar a interpretação, “o Renantique tem uma estrutura BrokenConsort renascentista, em que são combinados vários instrumentos da Idade Média e da renascença, unidos as vozes (soprano, tenor, contratenor, alto, baixo – barítono) para juntos executarem o melhor da musicalidade”, destaca.
A internet facilitou muito o trabalho de pesquisa do grupo. Alguns instrumentos e partituras foram comprados na Inglaterra a exemplo do cromorno (tipo de instrumento de sopro muito popular na renascença). Outros foram construídos aqui em Sergipe baseados em plantas da época, como é o caso da viola de gamba, construída pelo luthier Passos, do município de São Cristóvão, e o Alaúde por Joaquim Pinheiro (in memorian), do Rio de Janeiro. Mas não bastavam os instrumentos e as partituras, a necessidade de estudar o período fez com que o grupo participasse de muitos eventos sobre música antiga pelo país. No ano passado em Olinda – Pernambuco, Emmanuel Vasconcellos teve a oportunidade de conhecer o ‘papa’ da música antiga, o gambista, regente e compositor catalão JordiSavall, “foi fantástica a maneira como ele abordou a relação da música do oriente e ocidente. Foi um sonho realizado”, disse. De sonho e muita resistência sobrevive o Conjunto de Música Antiga Renantique. É um dos únicos grupos no Brasil que não tem ligação com escolas de música ou universidades. Um trabalho totalmente independente construído ao longo dos anos fidelizando plateias ao descortinar nos seus concertos a diversidade da música antiga e até sua influência na música brasileira.
Todo ano há o grande concerto de aniversário onde um programa específico é trabalhado. No ano passado o tema escolhido foi Amor & Guerra com canções e danças do século XII ao XVI. Canções embaladas pelo entusiasmo das guerras religiosas – as Cruzadas – e pelas façanhas incríveis dos cavaleiros além de retratarem o cotidiano. Há 5 anos, a bailarina e jornalista Natália Vasconcellos desenvolve um trabalho que trouxe a dança para aliar à música executada pelo Renantique. Inspirada pelo tratado Orchesography, em forma de diálogo sobre as danças camponesas e de corte do século XVI, de Thoinot Arbeau, Natália traduziu o documento decifrando os passos das pavanes, gaillards, bransles, bass dances, voltas, tourdions, entre outras danças e criou o Terpsícore Danças Antigas. O grupo é formado por César Leite, Estêvão Andrantos, Helena Feitosa, Ana Mércia e Sara Moares. O vestuário do grupo também é resultado de muita pesquisa histórica. O Conjunto de Música Antiga Renantique participa de alguns projetos como o ‘Patrimônio em Concerto’ que possibilita levar apresentações para todo Sergipe.
O grupo faz uma média de 30 concertos por ano, mas convive com a dificuldade de ter um trabalho independente e com poucos apoios. Para Emmanuel, o Renantique hoje ‘rema contra a maré’ e há um custo alto para a manutenção dos instrumentos que são bastante delicados e necessitam de cuidados especiais, “alguns concertos e projetos que fazemos tem patrocínio, outros não, mas sempre temos que ter dinheiro em caixa para a manutenção dos instrumentos e compra de partituras”, ressaltou. Muitos integrantes passaram pelo grupo nesses 19 anos. Alguns músicos amadores e todos amantes da música antiga. Do início de tudo fica a lembrança do soprano Adélia Vieira, falecida em 2002, que fez as primeiras apresentações com o grupo. Hoje o Renantique é composto por Emmanuel Vasconcellos (diretor artístico, alaúde renascentista, violas de gamba e viela de arco), Antônio Chagas (flautas-doce, cornamusa, cromornos, saltério de dedo, viola de gamba e percussão), Ednei Arnon (voz tenor, flautas-doce e percussão), Gustavo Adolfo (rabeca medieval e viola de gamba), Marcela Porto (voz soprano e percussão), Pedro Ribeiro (viola de gamba, flautas-doce e percussão) e Samuel Lucas (flautas-doce). Em 2016, quando o grupo completa 20 anos, um programa especial já está sendo elaborado: homenagens ao escritor espanhol Miguel de Cervantes e ao dramaturgo inglês Willian Shakespeare. “Em 2016 esses dois ícones da cultura ocidental fazem 400 anos de morte e com o Terpsícore Danças Antigas vamos montar algumas esquetes, dramatizar algumas cenas baseadas em canções originais do teatro de Shakespeare”, enfatiza Emmanuel. E assim o Conjunto de Música Antiga Renantique implanta mais uma cultura da resistência em Sergipe.
Sempre renascendo do desejo e amor pela música sacra e profana que formaram a cultura ocidental. Temos assim o privilégio de acompanhar, ou melhor, nos deleitar com um trabalho abnegado, fundamentado no estudo e na dedicação plenas. Vida longa ao Renantique e a essa música que nunca... nunca será empoeirada pelo tempo!

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